Habituei-me a pensar a história - da vida, das sociedades, das pessoas – não como um glorioso caminho de progresso crescente, mas como um construir e reconstruir de ciclos e círculos que, na sua dura caminhada, algures entre Sísifo e Prometeu, vão passo a passo construindo, ainda assim, avanços, cheios de quedas e desvios, mas virados para um desígnio sempre mais ambicioso desta coisa terrível e deslumbrante que é a humanidade.
E eis que de repente me sinto como que retirada das referências essenciais de tempo e espaço… Com um estranho, assustador e permanente sentimento de “déjà vu”, uma espécie de inversão dos movimentos rítmicos dos astros que na sua regularidade nos balizam isso a que chamamos tempo. Modos de ser e de estar que levaram tanto tempo e tanto esforço a ganhar – direitos reconhecidos, pessoas olhadas como pessoas, trabalho como penhor de dignidade, tolerância como valor maior... - agitam-se descontrolados diante dos nossos olhos num modo de zigue-zague e desnorte que ameaça recriar tempos e modos há muito banidos da consciência colectiva, há muito armazenados nas memórias como herança distante, assumida, mesmo quando vergonhosa, mas firmemente rejeitada para os vindouros. Foge o chão e foge o céu. E sem quase sabermos como nem onde, perdemos o tempo que é nosso, porque nos vemos arrastados pela irracionalidade vestida de ameaça como modo de banir o tempo. E com ele a consciência dos modos livres e dignos de se ser pessoa. Não se pode ignorar. Nem permitir. Porque o tempo e o modo não nos são dados nem tirados por ninguém. São nossos. Saem das nossas mãos e passam aos que nos seguem.
No infinito respeito pela vida, que nos cabe honrar, como disse de modo intemporal Jorge de Sena:
“E, por isso, o mesmo mundo que criemos,
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram”.
Maria do Céu Roldão